Sobre as Raízes e os Aspectos Econômicos da Miséria Humana
Outra evidência revelada por Rorty (citado por Bauman, 2005, p.43) é uma crítica aos mensageiros das novas visões ou militantes das novas “causas sociais” que preferem “não falar em dinheiro” e elegem como “[suposto] principal inimigo” um esquema mental e não o esquema de ajustes econômicos.
A evidência que fica afastada da memória é justo a que deveríamos garantir: a preocupação com e sobre as “causas profundas da miséria humana”. Sob os graves riscos de reproduzirmos e identificarmo-nos com erros antigos que constituem a repetição que habilmente deslocamos da memória: o fato de os países que saíram na frente em termos de industrialização possuírem uma riqueza muito maior que a dos não industrializados. Precisamos aprender e ensinar desde muito cedo que as desigualdades entre os próprios destinos e os dos outros não tem nada a ver “(. . .) com a Vontade de Deus nem com um preço necessário pela eficácia econômica, mas com uma tragédia evitável” (Rorty, citado por Bauman, 2005, p.44).
Pierucci (2000) relaciona a internacionalização do capital e a divisão internacional do trabalho como formas híbridas de colonização de um processo que ainda não foi interrompido.
Hoje, as ex-colônias estão presentes através de imigrações em massa: “trabalhadores e trabalhadoras que vão do Terceiro para o Primeiro Mundo (. . .) em busca de trabalho” (Portes, citado por Pierucci 2000, p.171), deflagrando a ampliação no campo das identidades e a proliferações de novas posições referentes de identificação cultural, “identidades genéricas, abstratas”.
Situações novas que, como diz o autor, trazem novamente à tona o velho racismo através de um neo-racismo e seus dois dispositivos básicos: “o da diferença notada com os olhos fixos na pele” e o da “inferioridade imaginada, deduzida, propagandeada” e projetada (Bhabha; Wieviorka, citados por Pierucci, 2000, p.174). Acrescentaríamos a este último dispositivo, as desigualdades aceitas e introjetadas como fato natural que programam um novo racismo mais “agressivo e regressivo” recheado de sutilezas nas culturas “hospedeiras” e “neocoloniais”.
Dado que entre o Ocidente rico e o resto pobre do mundo persistem relações desiguais de poder econômico, mas também de dominação política e hegemônica cultural, e dado que o fluxo internacional de bens de consumo, bens de capital e força de trabalho obedece por isso mesmo a um direcionamento desigual, a globalização é pensada como sendo, essencialmente, um processo de ocidentalização de toda a terra mediante a ocidentalização capitalista do “resto” (Hall, citado por Pierucci, 2000, p.16).
A desigualdade está na base do domínio colonial, onde a colônia não tem nem liberdade nem soberania e “(. . .) nem sequer tem personalidade reconhecida (. . .)” (Rémond, 1974, p.180). Fato que a identifica, identifica o pertencimento de seu povo, a distingue do protetorado e da sua tutelar metrópole promovendo cômoda situação de se ter uma identidade concedida em permuta frente à ilusão de vir a não ser, nem saber quem se é. Tornando-se, de tal forma, aquilo que não é irreconhecível. O historiador (p.149) chama tal fenômeno de “Movimento das Nacionalidades”, no “sentido de uma doutrina política dentro das fronteiras dos países” que se justapôs aos grupos lingüísticos, étnicos, históricos de naturezas dessemelhantes no nascimento das nações desenhado após 1815 e através do fortalecimento do Estado. Fortalecimento e dispositivos que entram no lugar do “mecenato dos antigos príncipes”, através do liberalismo e da não intervenção e neutralidade do Estado.
Bauman a partir de suas percepções de que houve uma época em que os moradores das aldeias[1] e vilas (vilões e sujeitos das ruas) eliminavam na fonte a questão da identidade, em suas formas de estar no mundo, até que isto se tornasse um problema, uma “tarefa”: o “alicerce” da idéia de soberania nas pretensões à legitimidade na crise de pertencimento que o Estado impunha a estes (2005, p.25). Podemos inferir que processo semelhante se deu para os povos primitivos e nativos nas antigas colônias.
Sobre a violência, Bauman (2005, p.27-28) nos conduz através da “ficção” que a “natividade dos nascimentos” vai desempenhar como fórmula empregada pelo nascente Estado Moderno à legitimação da exigência de uma subordinação incondicional por parte de seus súditos, os cidadãos, em troca do seu reconhecimento. Esta ficção exige coerção, convencimento, vigilância constante e esforço gigantesco pela superposição do território domiciliar à soberania invisível do Estado.
Fazendo um paralelo com o conceito das comunidades européias frente à invenção do Estado-Nação, podemos pensar que ao ser descoberto e explorado, o Brasil – ou “Pindorama” [2], como o chamavam alguns dos seus antigos nativos – possuía uma comunidade que não foi reconhecida por àquelas, civilizadas, que faziam e escreviam a história. Mesmo anteriores a ela, seu discurso oficial de verdades, que colonizavam o mundo com idéias eurocêntricas, santas, ideais, iluminadas e científicas.
As nações primitivas não constituíam autoridade suficiente nem foram reconhecidas, sendo descartadas enquanto riqueza na posição dos jogos de poder e seus dispositivos de manipulação arbitrários que fizeram com que o seu povo fosse eliminado, ao ser eliminada a sua cultura e língua.
A identidade nacionalizada polonesa contada pelo autor foi lida pela história, diferindo no caso do Brasil, mas também foi martirizada e precisou acomodar-se violentamente aos moldes das pretensas identidades de outras nações. Dispositivos que culminaram nas grandes guerras onde o Estado buscava a obediência de seus indivíduos e representava-se como sendo a concretização do futuro da nação e a garantia da continuidade dos seus indivíduos.
A base do domínio (colonial) como marca que identifica e distingue do protetorado tutelar (da metrópole) dispensa precocemente a liberdade e a soberania e promove ter-se alguma identidade reconhecida: sou brasileiro; mesmo sendo idéia fictícia e vulnerável frente à ilusão e o medo de vir a não ter garantias, vantagens e sem ser ou saber, definitivamente, quem se é (Rémond, 1974).
Pensemos nas condições brasileiras: Brasil, nome, refere-se ao primeiro produto (objeto, coisa, mercadoria) comercializado e extraído do pau-brasil na produção de tintura avermelhada para a Europa civilizada (Calligaris, 2000).
Quanto ao adjetivo do ser nascido no Brasil remeteria ao brasileiro ser o trabalhador estrangeiro na extração do pau-brasil, isto é reforçado na menção sobre a discussão da denominação correta para designação das pessoas que nasciam no Brasil. O trabalhador brasileiro, hoje, extrai de sua própria substância (pau-brasil), sua brasilidade (tinta vermelha) não mais para, nem por um explorador estrangeiro, mas para e por seu povo, trabalhador no nome, da sua própria tintura, trabalhando língua e brasilidade de brasilienses ou brasilianos (Gomes, 2007).
Novamente, seria fácil ampliar a lista para desmoronar pretensões de reconstituir infinitamente e arbitrariamente as convicções clássicas, arcaicas ou eurocêntricas (européias ou portuguesas). Deixando-nos com as perguntas: poderá, ao analisar sua reprodutiva autofragmentação, construir-se alguma outra imagem enquanto nação, não como unitária nem fragmentária, mas mais favorável ou diferenciada? As identidades brasileiras ficarão indefinidamente cristalizadas unicamente como povo oprimido, obedientemente agredido e “deitado em berço esplêndido”[3]?
Conforme teorização do eminente sociólogo, antes citado, a resposta seria um contundente não. Colocado em pauta outra análise: “a mudança já está ocorrendo, e há muito. Se for melhor conhecida, poderá ser mais bem produzida e acelerada. A mudança em Holanda se radicaliza e se amplia, o horizonte brasileiro se abre, e o seu espírito se enche de otimismo” (Reis, 2000).
[1] Conta um caso de censo numa aldeia da sua Polônia no antes da última grande guerra (2005, p.25).
[2] Mocellin (1987, p.32) referindo-se a “território que deu origem ao Brasil” como região das palmeiras ou Pindorama, do tupi-guarani. Termo verificado no Dicionário Brasileiro Contemporâneo, da editora Globo, de Porto alegre, 1965.
[3] Referência ao hino nacional Brasileiro.
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